Jacques Delors, um Amigo de Portugal | Artigo de opinião no Expresso

29.12.2023

Jacques Delors, um Amigo de Portugal | Artigo de opinião no Expresso

Jacques Delors, um amigo de Portugal

Aníbal Cavaco Silva

 

Deixou-nos esta semana um dos principais artífices da União Europeia. Numa organização complexa e multinacional as decisões não cabem a uma só pessoa, mas Jacques Delors foi a força motriz por detrás da maior evolução no bloco europeu depois da fundação, com um impacto profundo e transformador na vida de milhões de cidadãos europeus.

Delors definiu o quadro de ação da União Europeia como «a competição que estimula, a cooperação que reforça, a solidariedade que une». O seu legado é sobretudo o de um continente quase inteiro que, falando línguas diferentes e mantendo as identidades nacionais, funciona como um bloco económico coeso, relevante na cena internacional e com um essencial elemento de solidariedade entre os Estados-Membros. Para isso, foram decisivos os contributos que Delors deu para a criação do mercado interno europeu e os passos de gigante que foram a liberdade de circulação de pessoas, mercadorias, serviços e capitais, assim como a criação da União Económica e Monetária, materializada na instituição do Banco Central Europeu e do Euro.

Nos meus dez anos como Primeiro-Ministro, tive Jacques Delors como um dos meus principais interlocutores europeus. Foi, inequivocamente, um dos grandes amigos de Portugal e contribuiu de forma decisiva para que a primeira década do nosso país no bloco europeu fosse um caso de sucesso, visível na melhoria de qualidade de vida das pessoas, no reforço da igualdade de oportunidades e na profunda transformação económica e social operada no nosso país.

A elevação da coesão económica e social a pilar estrutural e a aprovação dos Pacotes Delors I e II foram determinantes para Portugal, que beneficiou igualmente do apoio do Presidente da Comissão em negociações específicas para o nosso país, como os programas de apoio à indústria portuguesa (PEDIP), ao desenvolvimento dos Açores e da Madeira (POSEIMA) e à modernização da indústria têxtil e do vestuário.

Delors juntava à sua inteligência, à sua argúcia e ao seu europeísmo o defeito de se irritar seriamente quando era contrariado naquilo que considerava certo. Portugal foi um beneficiário desse seu feitio na aprovação da verba comunitária para financiamento do PEDIP que teve lugar na reunião do Conselho Europeu de fevereiro de 1988, sob a presidência do Chanceler Kohl, sobre o pacote de reformas apresentado por Delors.

Na reunião que tive com Jacques Delors antes do início do Conselho, disse-me que só podia incluir na proposta de orçamento comunitário 400 milhões de euros para o PEDIP, em vez dos 500 por mim reivindicados. A proposta orçamental começou por ser rejeitada por vários países o que irritou profundamente o Presidente da Comissão. Voltei a reunir-me com Delors que, para minha surpresa, aceitou subir a verba específica para o PEDIP para 500 milhões na nova proposta de orçamento que iria apresentar ao Conselho e que acabou por ser aprovada num momento em que ajudei a desviar a atenção da Primeira-Ministra Margaret Thatcher, sentada ao meu lado.

A cumplicidade entre Delors e Portugal foi também decisiva para a aprovação do programa comunitário de apoio à indústria têxtil e do vestuário. No Conselho Europeu de Dezembro de 1993 esteve em discussão a aprovação das negociações entre a Comissão e os EUA sobre o “Uruguai Round” para liberalização do comércio internacional que se apresentavam negativas para a indústria têxtil nacional. Na noite anterior reuni-me com o Presidente da Comissão no seu gabinete a quem expliquei que estava em causa um interesse vital de Portugal e ameacei invocar o “Compromisso do Luxemburgo” e bloquear a aprovação do resultado das negociações.

Jacques Delors prometeu-me todo o seu apoio e na minha presença telefonou ao Presidente Clinton, explicando-lhe as dificuldades portuguesas. Na reunião do Conselho, Delors esteve ao meu lado na defesa das preocupações de Portugal e propôs um programa de apoio à indústria têxtil portuguesa para o período de 1994-99, o qual foi fixado em 400 milhões de euros, a que acrescia o recurso a um empréstimo do Banco Europeu de Investimento no valor de 500 milhões.

Portugal reconheceu o seu contributo para o desenvolvimento do país através da criação do Centro de Informação Jacques Delors, criado em 1995 por proposta do Governo português. Na hora da sua partida, é importante recordá-lo como uma das personalidades europeias mais importantes dos últimos 50 anos.

(Artigo de opinião publicado no semanário Expresso de 29.12.2023.)