A restrição orçamental e a eliminação das portagens de autoestradas
Aníbal Cavaco Silva
1. Interrogo-me sobre se os políticos portugueses sabem da existência da restrição orçamental.
No domínio do sistema de finanças públicas, a restrição orçamental (government budget restraint, em língua inglesa) é um conceito que nos diz que, em um determinado período, a variação das despesas do Estado (G) é igual à variação das receitas públicas (T) – principalmente impostos – mais a variação da dívida pública (D), isto é, ∆G= ∆T+∆D.
Não se trata de mera teoria, como podem pensar alguns. É uma identidade contabilística: verifica-se sempre. A ela nenhum Governo pode fugir.
Aumentar a despesa pública sem aumentar as receitas do Estado ou a dívida pública é uma impossibilidade. Reduzir os impostos implica uma redução compensadora da despesa pública ou um aumento da dívida pública.
Com a integração de Portugal na Zona Euro, a possibilidade de o Governo decidir financiar despesas públicas com criação de moeda desapareceu. Por outro lado, perante a dimensão da dívida pública portuguesa e a necessidade de cumprir as regras europeias de disciplina orçamental, é sensato que os nossos decisores políticos metam na cabeça que o recurso a empréstimos deve ser excluído como meio de financiamento de um aumento da despesa pública ou de uma redução das receitas do Estado. Isto é, convém que pensem que a restrição orçamental se reduz à igualdade entre as variações da despesa e da receita (∆G=∆T).
No fundo, a restrição orçamental é a expressão analítica da afirmação corrente de que “não há almoços grátis”.
2. O conceito de restrição orçamental é de tal forma importante para uma análise correta das políticas com incidência no orçamento que eu próprio lhe dediquei as primeiras páginas de um livro que publiquei no estrangeiro sobre os efeitos da dívida pública.
Na prática, a determinação dos efeitos da aprovação de uma política orçamental específica é tarefa difícil. Exige a especificação da variação compensadora de impostos ou de despesa pública que não pode deixar de a acompanhar.
Importa, no entanto, não ignorar a restrição orçamental, principalmente quando estão em causa decisões de muitos milhões de euros. O reconhecimento da sua existência e tê-la em devida conta melhora a qualidade da análise e das decisões sobre políticas específicas, como o ilustra um exemplo de atualidade: a eliminação das taxas de portagem de autoestradas, sete do interior e a da Via do Infante, no Algarve.
Como não há almoços grátis, a perda de receita de muitos milhões de euros que daí resulta é inevitavelmente acompanhada por mais impostos ou redução de despesa pública.
Quem são os grupos ganhadores diretos e os grupos perdedores da eliminação das portagens?
Ganhadores:
– utilizadores particulares portugueses, estrangeiros e entidades empresariais.
Perdedores:
– contribuintes nacionais, utilizadores e não utilizadores das autoestradas, chamados a pagar mais impostos;
ou
– cidadãos e entidades nacionais, utilizadores e não utilizadores das autoestradas, atingidos pela redução da despesa pública que financia a eliminação das portagens.
Em termos líquidos – diferença entre ganhos e perdas – quem fica claramente a perder é o grupo dos não utilizadores das autoestradas em questão, onde se destacam os portugueses que não possuem veículos motorizados.
Resulta daqui a conclusão óbvia de que a eliminação das portagens é uma medida regressiva: são os grupos de baixos rendimentos que proporcionalmente perdem mais. O seu nível de bem-estar seria maior se a medida não tivesse sido tomada.
(Recordo que falar de efeitos da eliminação das portagens é, por definição, fazer a comparação entre duas situações do país, no mesmo período, com e sem essa medida).
A conclusão de que a eliminação das portagens é negativa para os grupos de baixos rendimentos não é alterada mesmo que se suponha que tem algum fundamento credível a ideia de que as portagens são um fator determinante do investimento no interior do país e que daí resultará mais crescimento económico no futuro.
Esta conclusão também não se altera se essa medida for financiada pelo aumento automático da receita fiscal resultante do crescimento da economia, o chamado dividendo fiscal.
3. Pelo que fica demonstrado, não deixa de ser surpreendente que a eliminação das portagens tenha sido entusiasticamente aprovada na Assembleia da República pelos deputados dos partidos de esquerda, supostamente defensores dos grupos de baixos rendimentos.
Esses partidos nem se preocuparam em fazer uso da possibilidade de limitar a eliminação das portagens aos residentes permanentes das regiões do interior, o que atenuaria a regressividade da medida. E foram ao ponto de incluírem a autoestrada do Algarve, a Via do Infante, em que uma simples análise do número e do tipo dos seus utilizadores evidencia o elevado grau de regressividade da medida.
Não quero acreditar que, numa cedência ao populismo, os partidos de esquerda tenham aprovado a eliminação das portagens pensando que aquilo que interessava politicamente era a popularidade da medida, já que a pessoas não se apercebiam da injustiça que a acompanhava. Acredito, sim, que o fizeram por falta de informação.
Os assessores económicos dos respetivos grupos parlamentares tinham a obrigação de saber da existência da restrição orçamental e de para ela chamarem a atenção dos deputados, de modo a que as suas decisões fossem mais consentâneas com a ideologia que perfilham.
Fica aqui feita uma demonstração sintética da regressividade da medida, independentemente das justificações que os partidos que a aprovaram possam inventar para salvar a honra do convento.
O caso da eliminação das portagens ilustra como, para a melhoria da qualidade das análises e das decisões políticas em matéria de política orçamental, pode ser útil o conhecimento de alguns conceitos importantes da Teoria das Finanças Públicas, de que Richard Musgrave continua a ser o génio maior.
Desta forma, poderão evitar-se decisões que aumentem a desigualdade entre os portugueses, penalizando especialmente aqueles com mais baixos rendimentos.