Presidente Cavaco Silva falou sobre a União Europeia na Universidade da Beira Interior

27.03.2019

Presidente Cavaco Silva falou sobre a União Europeia na Universidade da Beira Interior

A convite do Reitor da Universidade da Beira Interior, Prof. Doutor António Fidalgo, o ex-Presidente da República, Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva, deslocou-se à Covilhã para pronunciar uma conferência com o tema “A Singularidade da Construção Europeia e o Futuro do Euro”, para alunos da Universidade.

Reproduz-se o texto da conferência:

A SINGULARIDADE DA CONSTRUÇÃO EUROPEIA E O FUTURO DO EURO

No próximo dia 26 de maio têm lugar as eleições para o Parlamento Europeu, a assembleia representativa dos cidadãos da União. Várias circunstâncias fazem com que estas eleições sejam particularmente importantes.

Creio que, para o exercício esclarecido do voto no final de maio, seria útil responder a algumas questões, designadamente:

— saber se a pertença à União Europeia é positiva para Portugal;

— qual deve ser o caminho a seguir no projeto europeu e se queremos ser parte desse caminho; e

— saber se vale a pena, para o futuro, acreditar no projeto europeu.

Tentarei, com esta exposição e a partir da minha análise e da minha experiência política, assim como do meu europeísmo convicto, dar uma visão sobre o passado e o futuro da União.

Vivemos tempos de incerteza e de forte tensão geopolítica: os EUA e a Rússia acabam de pôr fim ao Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermédio firmado em 1987 (mísseis com alcance entre 500 e 5500 Km), deixando os países da União Europeia como alvos desprotegidos; a China tem vindo a aumentar o seu arsenal nuclear; a instabilidade na Zona do Golfo Pérsico agravou-se com a decisão de Washington de abandonar o acordo sobre a suspensão do programa nuclear do Irão alcançado em 2015 e a imposição de novas sanções à República Islâmica; a guerra comercial entre os EUA e a China arrasta-se sem solução; a ameaça do Presidente Trump de impor elevados direitos aduaneiros sobre as importações europeias mantem-se; a desconfiança entre a Administração Norte Americana e os aliados europeus da NATO nunca foi tão grande, como ficou claro na recente Cimeira sobre Segurança de Munique; a capacidade cibernética e tecnológica é uma arma de afirmação de poder de alguns países à escala global; e temos ainda a crise política e humanitária da Venezuela, com fortes repercussões na América Latina pela dimensão da fuga das populações para os países vizinhos.

Por outro lado, a vaga nacionalista e de populismo político tem vindo a ganhar terreno, assim como a difusão de notícias falsas para distorcer as escolhas dos votantes europeus. O risco de uma crise financeira e económica global paira no horizonte.

Neste quadro, estou convicto de que é a União Europeia (EU) e em especial o seu núcleo duro, a Zona Euro, que melhor pode garantir segurança e prosperidade aos cidadãos europeus. Só uma União forte tem alguma hipótese de enfrentar a concorrência da China e dos EUA nos domínios estratégicos de futuro, como a robótica, as baterias para carros elétricos e a inteligência artificial.

A campanha eleitoral para as eleições europeias deve ser aproveitada para explicar e defender o projeto de integração, tal foi feito por Emmanuel Macron na campanha das eleições presidenciais francesas em que enfrentou e venceu a eurocética Srª Le Pen, da Frente Nacional.

É fundamental que os cidadãos europeus percebam que a UE é uma construção verdadeiramente singular, alicerçada nos valores da paz, da dignidade humana, da liberdade, da democracia, do Estado de Direito e do respeito pelos direitos humanos e inclui entre os seus objetivos o reforço da coesão económica, social e territorial, e a solidariedade entre os Estados-membros.

É igualmente importante que os europeus se apercebam do impacto positivo global que a pertença a este projeto teve nos seus países e nas suas vidas.

O Portugal de hoje, por exemplo, é radicalmente diferente daquele que eu encontrei quando cheguei a Primeiro-Ministro, em 1985. Na primeira década da adesão, em que tive o privilégio de estar à frente dos destinos do governo, foi possível ultrapassar uma boa parte dos atrasos estruturais que tínhamos em relação aos nossos concorrentes mais diretos. Quando aderimos à CEE, o nosso produto per capita situava-se à volta de 55 por cento da média europeia. Dez anos mais tarde, estávamos em 68 por cento. Apenas aos que conheceram bem Portugal antes de 1985 é possível imaginar como seria hoje Portugal se não se tivesse tornado membro da União Europeia.

Creio que vale a pena olhar um pouco para trás e perceber como foi possível construir esta União Europeia que temos, à qual sempre vemos apontarem-se defeitos e raramente virtudes.

A UE é uma construção única na história multisecular da Europa. Em nenhuma outra parte do mundo foi possível pôr de pé uma ordem regional baseada num tão amplo conjunto de interesses e valores comuns.

Trata-se de um projeto extremamente exigente, envolvendo não apenas a cooperação e a coordenação entre países, mas também a harmonização de legislação e a adoção de políticas comuns e mesmo de políticas únicas.

São países democráticos, uns grandes e outros médios e pequenos, com sistemas políticos diferentes – repúblicas, monarquias, estados federais e estados unitários – países do norte, do centro e do sul da Europa, alguns separados por milhares de Kms, com diferentes culturas e tradições. Alguns deles ainda há menos de um século travaram entre si guerras devastadoras em que milhões de pessoas perderam a vida.

É de facto surpreendente que países tão diferentes se tenham unido num projeto de partilha de soberania de tão grande densidade.

Mas a surpresa não fica por aqui.

Se olharmos à lista dos governos e políticos que, ao longo das décadas, em particular nos últimos 30 anos, negociaram e subscreveram os consensos que puseram de pé a complexa arquitetura da União Europeia e do seu núcleo duro, a Zona Euro, encontramos uma diversidade ideológica que nos espanta: democratas cristãos, sociais-democratas, socialistas, ambientalistas, populistas e nacionalistas, eurocéticos e euro-optimistas, governos maioritários e minoritários, coligações governativas.

Nada de semelhante se encontra na história europeia nem em qualquer outra parte do mundo.

E o espanto é tanto maior quanto sabemos que, com a aprovação do Tratado de Maastricht, o processo de integração penetrou em áreas do núcleo considerado “sagrado” da soberania dos Estados: a moeda, o orçamento, a defesa e segurança e a política externa.

Com este caleidoscópio de países, de governos e de políticos não surpreende que a construção da UE e da Zona Euro tenha passado por impasses, dificuldades, tensões e crises e que tenham sido cometidos alguns erros. O contrário é que seria surpreendente.

Só quem desconhece a história da Europa e a complexidade de uma negociação política envolvendo um elevado número de países, visando chegar a consensos sobre políticas comuns e partilhas de soberania, pode imaginar que seria possível à UE e à Zona Euro chegarem onde já chegaram através de um processo linear.

Contrariamente ao que muitos esperavam, os líderes políticos europeus, confrontados com as crises, não retrocederam. Antes concluíram que a resposta era mais e não menos integração. As crises têm funcionado como alavancas para o aprofundamento e aperfeiçoamento do projeto.

Neste ano de 2019, celebram-se dois acontecimentos decisivos do projeto de integração europeia tal como hoje o conhecemos: os 30 anos da queda do muro de Berlim e do desmoronamento da cortina de ferro que dividia a Europa, e os 20 anos do arranque da Zona Euro.

1989 e 1999 são dois marcos de uma história comum europeia de dimensão política e económica nunca antes verificada.

1989 é um ano de viragem na construção europeia. É a partir daí que, em face da mudança da realidade do nosso continente no pós-guerra fria, o projeto de integração dá um salto em frente verdadeiramente histórico e se acentua a sua singularidade.

Até então, tratara-se do desenvolvimento normal de um processo de integração económica, tendo como grande motivação a cooperação entre os Estados de modo a preservar a paz do pós-guerra. Tratara-se de implementar uma união aduaneira e aprovar medidas de harmonização da legislação dos Estados membros de modo a que o seu conjunto constituísse um verdadeiro mercado único. Apesar da forte intenção política, a racionalidade do projeto era basicamente económica.

A partir de 1989, perante a queda do muro de Berlim, o desmoronamento da cortina de ferro e do comunismo, a reunificação da Alemanha, o fenómeno da globalização e as mudanças tecnológicas, os líderes políticos da Europa democrática puseram em marcha um processo de aprofundamento da integração económica e política muito mais avançado, quer no plano institucional quer no das políticas.

O objetivo era ancorar a nova Alemanha unificada ao projeto europeu, enfrentar com mais eficácia os desafios da globalização, projetar e afirmar a Europa na cena internacional e ganhar peso político face aos Estados Unidos e ao Japão.

O Tratado de Maastricht, assinado em 7 de fevereiro de 1992, durante a Presidência Portuguesa das Comunidades Europeias, consagrou a viragem na construção europeia no sentido do reforço da partilha de soberania.

Foi instituída a União Económica e Monetária (UEM) e criado o Banco Central Europeu (BCE), uma entidade supranacional, gozando de total independência, para a qual foram transferidas competências do núcleo central ou “sagrado” da soberania dos Estados: o controlo da moeda, a condução da política monetária e cambial e a gestão das reservas externas. Isto é, foi criada uma união monetária federalista.

Com o Tratado de Maastricht os Estados acordam também em limitações à sua soberania orçamental, assumindo a obrigação de evitar défices excessivos, sendo que o respetivo procedimento foi depois reforçado pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) aprovado pelo Conselho Europeu de Amesterdão de 1997.

No mesmo sentido, Maastricht consagrou avanços de natureza política ao instituir a Política Externa e de Segurança Comum e um sistema de cooperação intergovernamental na Justiça e Administração Interna.

Os protagonistas políticos de Maastricht, entre os quais como Primeiro-Ministro me incluo, têm sido muito criticados pelo facto de terem deixado incompleta a arquitetura inicial da União Económica e Monetária, o que é verdade.

Criticar e apontar falhas a posteriori, depois de a Zona Euro já ter funcionado durante vários anos, é fácil. Mas há 30 anos, em Maastricht, e sendo o mundo muito diferente, não havia qualquer experiência sobre o caminho a percorrer. Para muitos, fora do espaço europeu, principalmente nos Estados Unidos, era um passo demasiado temerário e era grande a probabilidade de falhar. O Prémio Nobel da Economia, o professor norte-americano Milton Friedman, deu ao Euro não mais de 10 anos de vida antes de entrar em colapso, arrastando consigo a União Europeia. Falhou redondamente.

Goste-se ou não, Maastricht é um marco na história europeia e mundial. Constituiu um passo de gigante no aprofundamento da integração europeia: 11 Estados soberanos acordaram prescindir de um dos símbolos mais fortes da sua soberania, a moeda, e adotar uma moeda única, o Euro. Hoje são 19 Estados, num total de 340 milhões de habitantes.

Imaginem-se as dificuldades, os problemas, os obstáculos e as incertezas que se colocam a um governo que toma a decisão de decretar o fim da moeda do seu país.

É necessária muita audácia, muita coragem e, acima de tudo, uma convicção muito forte de que se trata de um passo decisivo para o futuro do país.

Pense-se no caso do Governo alemão: sabia que o povo e o banco central, o Bundesbank, eram maioritariamente contra a substituição do marco alemão pelo Euro, cuja custódia passava a pertencer ao Banco Central Europeu.

O marco alemão era então, na Europa, a moeda de referência, e a política monetária conduzida pelo Banco Central alemão comandava a política monetária seguida pelos outros países. Se o Euro está aí há 20 anos, tal deve-se ao então Chanceler Helmut Kohl que, na sua adoção, colocou todo o seu prestígio político.

Tendo sido testemunha direta da negociação que conduziu a Maastricht, é minha convicção que os líderes europeus da geração de 1989 foram tão longe quanto era politicamente possível.

De resto, a história não parou e foram sucessivamente aprovados novos tratados aperfeiçoando e aprofundando o projeto de integração europeia. O impasse que foi criado pela vitória do “Não” nos referendos que tiveram lugar na Holanda e em França em julho de 2005 sobre o Tratado Constitucional, que tinha sido aprovado pelos líderes europeus um ano antes, foi ultrapassado pela aprovação do Tratado de Lisboa, em dezembro de 2007, o qual procedeu à reforma do modelo institucional da União Europeia.

Foi esse o Tratado que criou a figura de Presidente do Conselho Europeu e o cargo de Alto Representante para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança, visando reforçar a coerência e eficiência da ação externa da União.

Foi também o Tratado de Lisboa que acolheu o agora muito referido, a propósito de Brexit, artigo 50, que estabelece a possibilidade de um Estado membro sair da União Europeia.

Em resposta à crise financeira internacional, que teve início nos Estados Unidos em 2008 e que atingiu a União Europeia, mergulhando-a na maior recessão desde a II Grande Guerra, a que se seguiu a grave crise da dívida soberana – devido muito a políticas erradas dos Estados membros que o escrutínio das instituições europeias não foi capaz de evitar –, os líderes europeus iniciaram, em 2011, uma nova fase do aprofundamento da integração, no sentido de completar a União Económica e Monetária e torná-la mais resiliente aos choques.

Para além da criação de um fundo de resgate europeu para apoiar países em situações de emergência financeira e sem acesso ao mercado externo da dívida, e para atenuar riscos de contágio, foram aperfeiçoadas e apertadas as regras de disciplina orçamental e os mecanismos de supervisão e coordenação das políticas económicas dos Estados membros.

Os líderes políticos europeus acordaram também na introdução de novas restrições à sua soberania orçamental, de que são exemplo a aprovação do Tratado Orçamental e a obrigação de os governos apresentarem à Comissão Europeia e ao Conselho de Ministros das Finanças (Eurogrupo) as suas propostas de orçamento, em outubro de cada ano, antes de serem submetidas aos respetivos parlamentos nacionais.

Por outro lado, e em resposta às crises bancárias em alguns países, os líderes europeus acordaram, no segundo semestre de 2012, na criação da União Bancária Europeia, a qual inclui a transferência para o BCE de uma componente financeira do núcleo da soberania nacional que ainda restava nas mãos dos bancos centrais de cada Estado-membro: a supervisão bancária. Tratou-se de uma decisão fundamental para reduzir os riscos do sector bancário e quebrar o círculo vicioso entre o risco bancário e o risco da dívida soberana que teve o apoio de Portugal.

O BCE, por sua vez, em linha com o que já tinham feito os bancos centrais dos Estados Unidos, do Japão e de Inglaterra, adotou a partir de meados de 2012 uma posição mais ativa e decidiu a realização de medidas de política monetária não convencionais, visando a melhoria das condições de financiamento das economias dos Estados-membros e assegurar o carácter único da política monetária em toda a área do Euro. O BCE, indo além do objetivo central da estabilidade de preços que os tratados lhe atribuem e atuando como um banco central dotado da função de emprestador de último recurso, fez a demonstração da sua capacidade de resolver as crises de liquidez dos mercados de dívida soberana.

Foram, sem dúvida, decisões políticas corretas, que não devem, no entanto, ser entendidas como etapas visando a construção de uma Europa federal. Visaram, sim, completar e reforçar a solidez dos três pilares da União Económica e Monetária Europeia instituída em Maastricht: a União Financeira, a União Orçamental e a União Económica.

Aqui chegados, creio que importa ponderar quais os caminhos a seguir e o que há a fazer.

Face aos movimentos eurocéticos e populistas em alguns Estados membros da União, a Zona Euro, onde é mais forte o espírito de diálogo e de compromisso entre os 19 Estados-membros, deve assumir-se inequivocamente como o motor do reforço do processo de integração. Quero com isto dizer que é a partir do fortalecimento da Zona Euro que se pode avançar para uma mais intensa integração europeia a nível global. Só a Zona Euro tem a estrutura necessária para que a Europa se possa afirmar como uma potência económica global.

Foram muitos os analistas que, durante a crise da dívida soberana, previram a desintegração da Zona Euro. Falharam na sua previsão. O projeto provou ter muita força.

A experiência do Governo grego do partido da extrema-esquerda Syriza, presidido por Alexis Tsipras, provou que a saída do Euro não é uma verdadeira opção. O Governo de qualquer Estado-membro tem pavor do que aconteceria no futuro se tomasse a decisão de sair do Euro: forte depreciação da moeda nacional, aumento dos preços dos produtos importados, agravamento do valor da dívida do Estado, dos bancos e das empresas para com não residentes, empobrecimento dos consumidores, corrida aos bancos para levantamento dos depósitos. Uma situação caótica, economicamente destrutiva, financeiramente ruinosa e socialmente devastadora, como escreveu o economista francês Jean Pisani-Ferry.

O Primeiro-Ministro Alexis Tsipras ao ser questionado pelo jornal britânico The Guardian, em julho de 2017, sobre a sua decisão de não retirar a Grécia da Zona Euro, depois de ter ganho, em julho de 2015, o referendo contra a austeridade que a troika queria impor ao seu país, respondeu: “Sair do Euro e ir para onde… para outra galáxia?”

Sobre a atitude dos líderes europeus em resposta à crise da dívida soberana, Herman Van Rompuy, então Presidente do Conselho Europeu, escreveu: “… fiquei francamente impressionado com a coragem política demonstrada pelos governantes, com a sua disponibilidade para adotarem medidas profundamente impopulares numa fase de ascensão do populismo. Não optaram pela via da demagogia e da cobardia, tiveram a coragem de dizer a verdade e de defender medidas difíceis para bem dos seus países e da Zona Euro”.

Analisando o caminho já percorrido pelo núcleo duro da União Europeia, conclui-se que os 19 Estados-membros da Zona Euro partilham hoje parcelas de soberania de relevância e extensão que ultrapassa tudo o que se podia imaginar há 30 anos, tendo aceitado democraticamente perdas sucessivas de graus de liberdade na definição e execução de políticas autónomas, nomeadamente nos domínios monetário e orçamental.

No entanto, o processo de aprofundamento da integração europeia não está encerrado. Novos passos visando completar a UEM estão atualmente em debate nas instituições europeias.

A questão mais importante, em minha opinião, é dotar a Zona Euro da função de estabilização macroeconómica e assim suprir uma importante insuficiência da sua arquitetura.

Trata-se de acrescentar à UEM uma capacidade orçamental própria para responder a duas situações.

Em primeiro lugar, os choques adversos sobre a produção e o emprego que atinjam especificamente um Estado-membro e que não possam ser resolvidos apenas a nível nacional (os chamados choques assimétricos).

Em segundo lugar, fazer face a uma recessão económica que atinja a Zona Euro no seu conjunto, evitando que toda a pressão de resposta europeia seja colocada na política monetária, à qual pode não restar margem de manobra por ter já sido intensivamente utilizada.

Uma política de estabilização europeia, justaposta à coordenação das políticas orçamentais dos Estados-membros já prevista nos tratados, permitiria definir uma combinação das duas grandes políticas macroeconómicas, a monetária e a orçamental, mais adequada para enfrentar uma recessão económica global. Ficaria assim atenuado o problema inerente a UEM que resulta de haver, de um lado, uma política monetária única, centralizada no BCE, enquanto do outro lado temos um sistema de 19 políticas orçamentais, refletindo, acima de tudo as prioridades de cada um dos países.

Uma capacidade de estabilização macroeconómica da UEM coloca naturalmente a exigência de um orçamento comum da Zona Euro, como foi proposto pelo Presidente Emmanuel Macron no seu discurso na Universidade da Sorbonne em setembro de 2017, ou então uma linha orçamental específica dentro do orçamento da UE, como foi defendido pelo Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker. Os meios financeiros necessários poderiam provir de contribuições dos Estados-membros da Zona Euro em períodos de expansão económica e, em situações extraordinárias, de empréstimos contraídos nos mercados.

À ideia de um orçamento da Zona Euro tem sido associada a proposta de um Ministro das Finanças e da Economia europeu. Independentemente da designação, faz sentido que a nível europeu exista uma entidade responsável não só pelo orçamento próprio da Zona Euro, pela política de estabilização macroeconómica, pelos programas de assistência financeira a Estados-membros em situações de emergência e que represente a área do Euro a nível internacional.

Importa ter presente que a criação de uma capacidade europeia de estabilização trará certamente consigo o reforço dos poderes de supervisão e de intervenção nas decisões nacionais de política económica e orçamental, de modo a evitar desvios às regras europeias de estabilidade económica e financeira e adiamentos persistentes das reformas estruturais. Trata-se de combater o chamado risco moral, isto é, de os governos, sabendo que podem beneficiar do apoio comunitário em caso de crise, descurarem a aplicação de políticas económicas sustentáveis. Só assim será possível evitar a desconfiança de alguns Estados-membros de que estão a pagar as decisões políticas erradas de outros.

Dotar a UEM de uma vertente de estabilização macroeconómica seria benéfico para Portugal. Em primeiro lugar, porque tornava a União Europeia menos vulnerável à próxima recessão, mas também porque iria ao encontro da sua velha reivindicação de uma resposta europeia aos choques assimétricos negativos. País na periferia ocidental da Europa, com um único vizinho, a Espanha, muito dependente da importação de petróleo, de gás e de produtos alimentares, Portugal receia ser atingido por eventos fora do seu controlo mais severamente do que os seus parceiros europeus.

A recessão económica em Espanha em 2012-13 foi um verdadeiro choque assimétrico para Portugal, coincidindo com a execução do exigente Programa de Ajustamento que tinha sido imposto pelas instituições internacionais para corrigir os desequilíbrios económicos e financeiros do País. As exportações portuguesas para o mercado espanhol representam 24% do total. Em nenhum outro país da UE se verifica algo semelhante.

A negociação que tem vindo a ocorrer sobre a criação de uma função orçamental de estabilização tem registado progressos limitados, enfrentando a oposição da Alemanha e da Holanda, principalmente no que se refere à criação de um sistema europeu de seguro de desemprego.

Foi no entanto significativo que a cimeira dos países do Euro de 14 de dezembro de 2018 tenha acolhido a proposta do Eurogrupo de criação de um instrumento orçamental para a Zona Euro destinado à promoção da convergência e das reformas estruturais para a competitividade das economias dos países membros.

O Ministro das Finanças da Alemanha, Olaf Scholz, afirmou, no final de fevereiro último, que estava para breve um consenso sobre um modelo de orçamento para a Zona Euro, afastado que estava o receio de que pudesse vir a ser um mecanismo de transferências permanentes dos países mais ricos para os menos desenvolvidos.

As negociações visando completar a União Bancária registaram recentemente avanços importantes. Para apoiar a resolução dos bancos em grave crise de liquidez, o Fundo Único de Resolução poderá recorrer a empréstimos junto do Mecanismo Europeu de Estabilidade, um fundo que foi criado durante a crise da dívida soberana para apoiar os países em situação de emergência financeira, como foram os casos da Grécia, Irlanda, Portugal e Chipre.

Por outro lado, terão sido criadas as condições para que a Alemanha retire as suas objeções à criação do Sistema Europeu de Garantia de Depósitos, considerado essencial para reduzir os riscos de corrida dos depositantes aos bancos. Estando centralizado no BCE a supervisão das instituições de crédito, é lógico que aos depositantes seja dada a proteção de um fundo comum europeu.

A política de crédito continua a ser uma competência dos bancos centrais nacionais. Contudo, em ordem a fortalecer a União Bancária, a Presidência do Conselho e o Parlamento Europeu chegaram recentemente a um acordo sobre as exigências de capital que os bancos têm de respeitar relativamente ao crédito mal parado, tendo em vista melhorar a qualidade dos ativos dos bancos da Zona Euro.

Com o objetivo de diversificar as fontes de financiamento das empresas e melhorar as condições de acesso ao mercado de capitais, para além do crédito bancário, está também avançado o processo de negociação da proposta da Comissão Europeia de aprofundamento da integração dos mercados de ações e obrigações e de reforço da estrutura de supervisão dos agentes financeiros que neles operam.

Caminha-se, portanto, para que, num espaço de tempo relativamente curto – dois anos segundo a Comissão Europeia – a UEM fique praticamente completa na sua componente da União Financeira, dela fazendo parte os pilares da União Monetária, da União Bancária e da União dos Mercados de Capitais.

Esta construção da União Europeia, que é, repito, única na história multisecular da Europa e no mundo em termos de densidade de cooperação e de partilha de soberania entre um elevado número de países, tem sido objeto de críticas violentas por parte dos seus detratores e têm sido muitas as vozes a desejar a sua desintegração.

É certo que ao longo do caminho percorrido foram cometidos alguns erros, atrasos na deteção de insuficiências e vulnerabilidades que importava corrigir e adiamentos de decisões na resolução de problemas urgentes.

Recordo a classificação do Pacto de Estabilidade e Crescimento de “estúpido” por parte do Presidente da Comissão Europeia Romano Prodi e o ajustamento das suas regras para que ficasse incólume a violação dos limites ao défice orçamental por parte da Alemanha e da França em 2003.

O mesmo podia dizer da excessiva ênfase atribuída à consolidação orçamental dos Estados membros durante a recessão de 2012-13, em detrimento de uma estratégia europeia de crescimento económico e criação de emprego, o que contribuiu para a alienação do apoio de muitos cidadãos europeus ao projeto de integração.

E podia acrescentar também a tentativa – felizmente não concretizada – de impor, no âmbito da criação do Mecanismo Europeu de Estabilidade, a obrigatoriedade de participação dos investidores privados em caso de incumprimento da dívida por parte de um Estado-membro, assim como a tentativa de impor um corte generalizado aos depósitos bancários no caso do resgate de Chipre em 2013.

Todos aqueles que evidenciaram e criticaram estes e outros erros cometidos pelos líderes europeus são credores de apreço.

Certos académicos e analistas têm, erradamente, atribuído ao Euro a fonte do crescimento do populismo e do nacionalismo eurocético em alguns países da União Europeia, quando as razões residem, acima de tudo, em atitudes e políticas que estão fora das áreas de soberania partilhada na Zona Euro, como é o caso dos fluxos migratórios.

As críticas às imperfeições da construção da União Europeia ficam, contudo, muito atenuadas quando é tida em devida conta a natureza específica da negociação política entre um elevado número de países com características diferentes que está na sua base, e os compromissos e limitações que os acordos entre Estados soberanos sempre envolvem.

É natural que numa união monetária que não é uma união política, mas uma união de Estados soberanos – e assim continuará a ser no futuro – surjam tensões nos processos de negociação que visem o aprofundamento da União e a definição das políticas comuns e das políticas únicas.

Os acordos entre Estados são soluções possíveis e não soluções ótimas determinadas por análises racionais.

Por outro lado, é bem sabido que a Zona Euro não é uma zona monetária ótima, tal como foi definida por Robert Mundell em 1961, e não se prevê que venha a sê-lo no futuro.

Com efeito, os preços e os salários não são suficientemente flexíveis, a mão-de-obra não se desloca facilmente de uns países para outros devido a barreiras culturais e linguísticas e a Zona Euro não dispõe a nível central de um orçamento de estabilização da produção e do emprego de dimensão comparável ao de um Estado federal.

A União Económica e Monetária tem, portanto, de conviver com os problemas e dificuldades inerentes às suas próprias imperfeições. É da natureza da negociação política que novos passos no sentido do aperfeiçoamento e aprofundamento da integração europeia deem lugar a desencontros e tensões entre os Estados-membros e impasses difíceis de ultrapassar.

É paradigmático o debate sobre a harmonização da tributação dos lucros das sociedades, para atenuar a concorrência desleal resultante de taxas de imposto muito baixas em alguns países, que se arrasta há anos sem que seja alcançado um compromisso.

Nada disto, nem o Brexit, reduz a grandeza histórica da construção da União Europeia e da Zona Euro. Os resultados, nas suas múltiplas dimensões, são indiscutivelmente positivos. 60 anos de paz, alargamento do espaço europeu de liberdade e democracia, controlo da inflação, estabilização do câmbio, uma voz forte na cena internacional e melhoria substancial dos níveis de bem estar das populações, sem esquecer o enriquecimento humano que resulta da liberdade de circulação das pessoas num vastíssimo espaço geográfico, de que é exemplo o programa Erasmus.

Isto explica que o número de Estados-membros da União Europeia, de 6 em 1957, tenha subido para 28; que a Zona Euro, de um núcleo inicial de 11 incorpore hoje 19 países e que sejam vários aqueles que, não fazendo parte da União, desejam integrá-la.

Antes de concluir, a derradeira questão: vale a pena acreditar no projeto europeu?

A situação do conjunto dos países da União Europeia é inequivocamente melhor do que seria se os líderes da Europa democrática não tivessem posto de pé os pilares básicos do projeto de integração económica e política.

A pertença à Zona Euro não impede, no entanto, um Estado-membro de cometer erros de política económica com custos que podem ser muito elevados. Foi o que aconteceu com a Grécia, a Irlanda, Portugal e Chipre.

Em 2011, Portugal chegou a uma situação de quase bancarrota e viu-se obrigado a subscrever um Programa de Assistência Financeira com a Comissão Europeia, o FMI e o BCE como contrapartida de um empréstimo de 78 mil milhões de euros para assegurar o financiamento do Estado e da economia.

Tal deveu-se a três erros de política económica interdependentes que um país do Euro não podia cometer.

Primeiro, agir como se o desequilíbrio das contas externas, num espaço monetário unificado, deixasse de constituir uma restrição da política económica e que o País pudesse financiar-se sem limites nos mercados financeiros europeus.

Segundo, descurar a competitividade externa da economia e favorecer, acima de tudo, a produção de bens e serviços não transacionáveis.

Terceiro, não cuidar devidamente do controlo do défice orçamental. Este erro deve-se também à ineficácia da supervisão das instituições europeias a quem compete o escrutínio das finanças públicas dos Estados-membros.

Os programas de austeridade que resgataram os países do Euro que mergulharam em situação de grave crise económica e financeira teriam sido mais violentos sem as ajudas a que a existência da União Económica e Monetária e do Banco Central Europeu lhes permitiu aceder.

Acresce que a experiência tem demonstrado que as restrições impostas pela pertença dos países à Zona Euro são um travão virtuoso à falta de transparência das contas públicas, ao adiamento das reformas indispensáveis ao desenvolvimento económico e social, ao enviesamento dos políticos a favor dos défices orçamentais e à sobrecarga das gerações futuras. Os portugueses, tal como outros povos europeus, têm múltiplas razões para agradecer à União Europeia e à Zona Euro.

As reformas levadas a cabo pelos líderes europeus na sequência da crise da dívida soberana tornaram mais difícil aos governos cometerem erros de gestão orçamental. O “bode expiatório” de Bruxelas tem-se revelado útil para que os governos façam aquilo que deve ser feito.

A integração europeia muito avançou no “curto” espaço de 30 anos. A Zona Euro está hoje melhor preparada para enfrentar um choque externo do que estava aquando da crise financeira internacional de 2008.

O Euro é hoje um pilar do sistema monetário internacional, uma moeda de referência mundial, sendo usado como moeda de pagamento, de investimento, de reserva e como âncora das moedas de 60 países com 175 milhões de habitantes. A não ser que aconteça algo de muito extraordinário, impossível de prever nas presentes circunstâncias, o Euro está aí firme para ficar.

Lembro ainda, para terminar, que o Euro é uma moeda bastante popular junto dos cidadãos europeus (tem o apoio de 74% dos cidadãos de acordo com o último Eurobarómetro, a mais alta taxa de sempre) e que as vozes político-partidárias que reclamavam a saída da Zona Euro têm vindo a esmorecer.

340 milhões de habitantes partilham extensas e importantes parcelas de soberania, incluindo uma moeda comum, o Euro, cujo poder de compra todos têm interesse em preservar, o que reforça o sentimento de pertença a uma mesma comunidade.

Goste-se ou não, tudo aponta para que o Euro continue no futuro a ser uma moeda de crescente sucesso.

O Euro é, em minha opinião, um dos ativos europeus mais valiosos que a minha geração deixa aos jovens Portugueses. Protejam-no e tirem bom proveito dos benefícios que ele proporciona.

Obrigado.

 

(Fotos: UBI)