Lançamento do livro “Ética Aplicada – Economia”

04.10.2017

Lançamento do livro “Ética Aplicada – Economia”

O Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva apresentou, na Ordem dos Economistas, o terceiro volume da coleção “Ética Aplicada”, dedicado à “Economia”, com coordenação da Prof. Doutora Maria do Céu Patrão Neves e do Prof. Doutor João César das Neves. 

É este o teor da intervenção do Prof. Cavaco Silva:

Os coordenadores deste livro, os Professores César das Neves e Maria do Céu Patrão Neves, muito me ajudarem no exercício de funções públicas como meus assessores. O Prof. César das Neves no tempo de Primeiro-Ministro e a Prof. Maria do Céu Patrão Neves no tempo de Presidente da República.
Essa a primeira razão por que aceitei o convite para estar hoje aqui.
A segunda, a relevância do tema Ética na Economia nos tempos que correm.
Ética é um ramo do saber bem conhecido pelos dois coordenadores. A Prof.ª Maria do Céu publicou há pouco tempo o livro “O Admirável Horizonte da Bioética” e o Prof. César das Neves publicou um livro sobre “Ética Empresarial” com 574 páginas e é apenas um livro de Introdução.

1. Comecei a ler este livro sobre ética aplicada à Economia no verão passado, no dia seguinte a ter visto na televisão o filme Madoff: Teia de Mentiras.
Trata-se da história de Bernard Madoff, um homem que era visto no mercado financeiro Norte-Americano como um génio e que, no fim de 2008, se descobriu que era o autor da maior fraude financeira de que há memória. Foi condenado a 150 anos de prisão.
Durante 16 anos geriu um esquema Ponzi, apropriando-se de cerca de 65 mil milhões de dólares. Os investidores entregavam a Madoff dinheiro para aplicações financeiras supostamente altamente lucrativas. Com o dinheiro que recebia dos novos investidores distribuía elevados dividendos aos clientes mais antigos, tal como fizera, na década de 1920, Charles Ponzi, um americano emigrado de Itália.
O esquema Ponzi de Madoff entrou em colapso quando rebentou a crise financeira internacional de 2008 e o dinheiro captado junto de novos investidores deixou de ser suficiente para remunerar e satisfazer os pedidos de reembolso dos investidores mais antigos.
Quando comecei a ler o livro que me traz hoje aqui interroguei-me sobre o que poderiam ter pensado sobre a ética na Economia os milhares de vítimas de Madoff – muitos ficaram na miséria, vários suicidaram-se, incluindo um dos seus filhos. Ou o que teriam pensado as pessoas que, tal como eu, viram o filme.
Para eles, a Economia e a ética eram certamente vistas como realidades antagónicas, que se excluíam mutuamente, que entre elas havia uma insanável contradição.
Trata-se, contudo, de uma conclusão errada.
Madoff não desenvolveu qualquer atividade económica. A sua ação não se situava no domínio da Economia. Era um burlão e não um agente económico. Geria, como diz o título do filme, uma teia de mentiras, enganando os investidores.
Como a questão da ética se coloca em todos os domínios da conduta humana, importa ter uma ideia sobre onde nos situamos quando falamos de ética na Economia.
Segundo o Professor Lionel Robbins, autor de uma das definições mais citadas, o objeto da Economia são os aspetos do comportamento dos seres humanos que se relacionam com a existência de escassez, entendida esta como relação entre objetivos, pessoais ou coletivos, e meios para satisfazê-los.
Resulta daí que a Economia visa a realização das pessoas e o bem-estar da sociedade. É daqui que vem a sua dimensão ética.

2. Mas mesmo para aqueles que sabem o que é a Economia e se interessam pelas questões económicas, o tema deste livro – a ética aplicada na economia, o que é normativo em economia – pode parecer uma novidade estranha.
Não surpreende.
As pessoas são confrontadas no dia-a-dia não sobre o que deve ser a conduta dos agentes económicos, a análise normativa, mas sim com a análise daquilo que é a economia, a análise positiva:
– a análise da evolução da produção, do consumo, do investimento, das exportações, da inflação.
– que o défice público, a dívida, o desequilíbrio externo caminham para níveis insustentáveis ou estão a melhorar.
– que o crédito bancário, as taxas de juro, as vendas da empresa X, os lucros da multinacional Y aumentaram ou diminuíram, que as cotações na bolsa subiram ou desceram.
Na economia corrente, as análises de tipo positivo dominam quase a 99%.
São escassas as análises e os artigos sobre a ética, sobre o normativo que deve ser seguido pelas empresas, pelos empresários, pelos gestores, pelos bancos, nas decisões de política económica, pelas organizações internacionais.

3. No entanto, desde os primórdios da ciência económica que os autores se preocupam com as questões éticas e normativas, pronunciando-se sobre o que deve ser e procurando influenciar as decisões dos agentes económicos e políticos.
Adam Smith, considerado o pai da moderna Economia, aquele que autonomizou a questão económica em relação aos domínios da moral e da política, era professor em Glasgow de Filosofia Moral e, 17 anos antes de publicar o clássico “A Riqueza das Nações”, publicou o livro “Teoria dos Sentimentos Morais”. Não surpreende que em Adam Smith as questões económicas e as considerações éticas se interpenetrem.
O autor de um dos textos incluídos no livro que nos traz hoje aqui lembra e bem que a ciência económica permanece inseparável da filosofia moral da qual emergiu e convive em relação saudável com elementos de natureza ética e política.

4. Quando entramos no campo da ética aplicada à Economia, a primeira questão que se nos coloca é a de saber qual o padrão ético, as regras normativas que tomamos como referência para aferir a conduta dos agentes económicos e das suas organizações.
Será que em Portugal, a ética na economia é a mesma que na Rússia, na China, na Índia, na África do Sul, na Turquia, ou no Irão? Com certeza que não.
Os juízos éticos dependem do sistema de valores matriciais prevalecentes na sociedade em que os indivíduos atuam.
Nos países da União Europeia, em geral, toma-se como matriz de referência, para aferir o comportamento ético dos agentes económicos, os valores morais de uma sociedade democrática de tipo ocidental, de tradição judaico-cristã, onde vigora uma economia de mercado. Mas mesmo neste quadro não se pode falar em consenso sobre regras normativas, nem tão pouco em relação às posições resultantes da economia do bem-estar Pareteana.
Neste livro, os autores de alguns textos são explícitos em relação ao padrão ético que tomam como referência, outros não. Encontramos, por exemplo, a invocação explícita dos valores a que a doutrina social da Igreja confere um cunho normativo, com destaque para o respeito da dignidade da pessoa humana, o direito à propriedade privada, assim como o direito à intervenção do Estado na economia enquanto exigência do bem comum.

5. Este livro, que reúne 16 textos de diferentes autores, é suposto abordar, sem pretensão de ser exaustivo, a ética aplicada à economia, o que deve ser a conduta dos agentes económicos em vários domínios da economia: na atividade das famílias, na gestão das empresas e seus negócios, no mercado do trabalho, no marketing e na publicidade, na responsabilidade social, na política económica.
Nalgumas áreas é extremamente difícil ser preciso sobre o que é o exercício ético da economia, explicitar como se devem comportar nas suas atitudes e ações os agentes económicos no seu dia-a-dia.
É por isso que, nalguns textos, não encontramos regras de conduta, requisitos éticos, mas sim objetivos que são considerados relevantes do ponto de vista ético, ou exemplos do mundo real de violação de princípios éticos.
As coisas seriam mais fáceis se os juízos éticos em economia não estivessem às vezes impregnados de juízos subjetivos e se o que é ético coincidisse com aquilo que é legal.
Vários autores sublinham que mesmo em regimes democráticos de tipo ocidental nem sempre o que é legal, é moral em economia. Normalmente, o que é moral é mais exigente do que aquilo que é legal.
O autor de um texto do livro escreve que nenhuma lei proíbe, em absoluto, a mentira e a deslealdade, nem nenhuma lei, só por si, assegura a decência, a verdade, a honradez.
Pode dizer-se que a lei, é, em geral, um mínimo ético.

6. Sendo as empresas o elemento-chave da Economia, não surpreende que vários autores tratem da ética empresarial, tema sem dúvida da maior relevância.
Eu próprio, em 2009, ao escrever sobre a crise financeira internacional, afirmei que a promoção e a adoção de elevados padrões éticos na condução das empresas são de crucial importância para o progresso económico e social do nosso país.
Mas, afinal, o que é a conduta ética de uma organização como uma empresa? Não pode deixar de ser o resultado do comportamento daqueles que nela trabalham, cuja conduta pode ser avaliada em termos éticos. Mas importa ter presente que o próprio ambiente empresarial em que um indivíduo atua influencia o seu comportamento ético.
Isto é, são as pessoas que conferem o carácter ético às empresas, mas o contexto empresarial influencia a conduta das pessoas.
A questão básica colocada pelos autores que se debruçam sobre a ética empresarial é a de saber se é possível às empresas competirem com sucesso na economia global, preservando a ética.
Um dos autores é bastante otimista e conclui mesmo que o respeito pela ética humanista é um fator de competitividade. E conclui: “é inteiramente de excluir a ideia de que os líderes empresariais de sucesso têm de ser amorais e, se necessário, imorais”.
Um outro autor elabora a sua reflexão sobre a concorrência à luz dos paradoxos envolvidos entre ética e competição e evidencia a dificuldade em definir o que é a conduta correta na área da concorrência, face aos complexos dilemas e tensões que enfrentam as empresas atuando em mercados hipercompetitivos.
Conclui este autor que nem a concorrência deve fazer esquecer as regras éticas, nem as regras éticas podem ser formuladas sem a consciência do quadro concorrencial. Para isso são precisos “líderes virtuosos”, sem o que “é provável que a concorrência continue, em geral, a impor-se à ética”.
Há sinais de que, cada vez mais, as empresas revelam preocupações éticas.
Recentemente, li um artigo sobre fundos norte-americanos especializados no investimento em empresas “virtuosas”, empresas classificadas “AGS”. A letra A para respeito das regras ambientais, a letra G para boas práticas de governação e a letra S para preocupações sociais.
No lado oposto às empresas “virtuosas” estariam as classificadas como “pecadoras” onde se encontram as empresas de tabaco, álcool, jogo, armas de fogo e, no futuro, talvez as petrolíferas.

7. Um dos autores debruça-se sobre o marketing e a publicidade e conclui, contrariamente à ideia muito generalizada, que é limitada a capacidade destas técnicas para modificar as preferências e enganar os consumidores, violando princípios gerais da ética. Para isso, segundo o autor, contribui a concorrência, as autoridades de supervisão, as tecnologias de informação e os poderes coercivos existentes na sociedade.
É uma posição que me parece excessivamente otimista, principalmente quando o autor acrescenta que o mesmo se pode dizer em relação ao marketing na política.
Segundo ele, está longe de estar demonstrada a eficácia da comunicação negativa no marketing político, isto é, dizer mal de um candidato concorrente em detrimento da exposição do ponto de vista do próprio candidato, prática que é bem conhecida de todos os presentes.
Penso que a publicidade política tem especificidades próprias e suscita tais problemas que impedem que a ela se estendam conclusões éticas do marketing empresarial.
Pense-se no seguinte exemplo: o candidato convence a empresa de marketing que para ele trabalha de que difundindo mentiras ganha as eleições – é um dos tipos de mentiras, ao lado das que se dizem durante a guerra e depois da caça, referidas por Winston Churchill. O que faz um diretor de marketing da empresa que se preocupa com princípios éticos, mas que considera que a vitória do seu candidato é o melhor para o futuro do País?

8. Mas como o livro que está aqui em questão não é sobre ética política, passo a uma área que, apesar da sua enorme importância para o funcionamento normal da economia, é uma daquelas que mais dúvidas em termos éticos costuma suscitar ao comum dos cidadãos.
Refiro-me à banca e ao sistema financeiro.
Basta recuar à crise financeira internacional que se desenvolveu nos EUA, a partir do 2º semestre de 2007, e que teve o seu ponto marcante na falência do Banco Lehman Brothers, em setembro de 2008, para encontrar exemplos de graves falhas éticas na indústria bancária. Eu próprio escrevi, em Abril de 2009, que na génese da crise muito pesaram a violação de normas éticas, a atuação de gestores que simplesmente perderam o sentido da decência.
A questão ética no contexto do sistema bancário é tratada no livro por um autor com experiência profissional no sector. O seu texto aborda os conflitos de interesse entre o poder político e o sistema bancário.
Na página 232, o autor constata algo que não é estranho em Portugal: “o processo de alocação de crédito é frequentemente sujeito a interferências políticas. Esta prática constitui um atentado grave aos direitos financeiros de propriedade dos cidadãos e resulta de falhas graves de conduta por parte dos decisores e das instituições bancárias”.

9. Por último, uma referência aos problemas de natureza ética suscitados pela intervenção do Estado na economia através das políticas públicas.
Neste domínio, o que os autores nos dizem é que a ética preconiza políticas económicas de combate ao desemprego e de redução da pobreza e políticas que influenciam o bem-estar das gerações futuras, como a contenção da dívida pública e da utilização dos recursos naturais.
Por outro lado, quando pensamos nas múltiplas e complexas questões suscitadas pela globalização, nas situações favoráveis para uns países e prejudiciais para outros criadas pelos fluxos internacionais de mercadorias, serviços, capitais e pessoas, sentimos a necessidade de uma matriz de ética para a economia global.
O autor que aborda esta questão sublinha os esforços desenvolvidos pelas Nações Unidas nesse sentido, apelando ao respeito de um quadro de valores básicos na concretização de negócios a nível global. No entanto, a ausência de juízos éticos universalmente aceites não só cria grandes dificuldade em estabelecer um conjunto adequado de regras éticas a respeitar por todos os países, como dificuldades em garantir o seu cumprimento.
Concluo.
Os problemas éticos que os vários domínios da economia suscitam são muito complexos e era impossível realizar um tratamento exaustivo do tema num livro escrito a 17 mãos. Por isso, os seus coordenadores afirmam que “o livro cumpre a sua missão de ser um roteiro, um simples mapa para uma viagem”.
Dada a relevância do tema, é um roteiro que vale a pena seguir.