A social-democracia e o discurso do Primeiro-Ministro
Aníbal Cavaco Silva
À luz de uma simplista dicotomia esquerda-direita, muito se disse e escreveu nos últimos dias sobre a qualificação ideológica das medidas programáticas anunciadas pelo líder do PSD e Primeiro-Ministro no encerramento do congresso que teve lugar em Braga nos dias 19 e 20 deste mês.
Perante isso, fui levado a pensar que, nos meios mediáticos e opinativos, reinava um certo esquecimento do que é a social-democracia europeia moderna.
Ao longo dos anos, documentei-me de literatura académica sobre a social-democracia e publiquei mesmo, em outubro de 2020, o livro “Uma experiência de social-democracia moderna”, em que evidenciei a aplicação prática dos seus princípios pelo governo a que tive a honra de presidir.
Parece-me oportuno lembrar que a social-democracia europeia moderna não é uma ideologia dogmática e determinista. É uma via reformista e gradualista para a transformação da sociedade que, preservando os valores fundamentais da liberdade, da democracia, da justiça social e da dignidade da pessoa humana, inova para dar resposta às exigências e aos problemas dos novos tempos e procura para cada país as soluções que melhor sirvam a sociedade.
Foi este o entendimento adotado depois da II Grande Guerra pelos partidos social-democratas alemão, sueco e inglês e que se consolidou posteriormente. Em 2011, um grupo de estudiosos britânicos do futuro da social-democracia europeia defendeu que a social-democracia devia ser objeto de uma constante inovação de modo a responder aos novos desafios. Já Bernstein, em 1899, escrevera que a social-democracia é “movimento”.
A social-democracia moderna é, de facto, uma ideologia que se adapta às realidades económicas e sociais da globalização, da integração europeia, do desenvolvimento tecnológico e da sociedade da informação e da afirmação dos poderes supranacionais. Distingue-se de outras ideologias adotadas por partidos que, perante as restrições impostas pela realidade, resistem a libertar-se de posições dogmáticas, como aliás se tem verificado em Portugal.
A partir dos anos 80 do século passado emergiram como características básicas da social-democracia, além dos seus valores fundamentais (o ethos), a defesa da economia de mercado assente na livre iniciativa privada e na concorrência, a promoção da solidariedade e da justiça social, a igualdade de oportunidades, o acesso universal aos cuidados de saúde, a generalização do acesso à cultura e a proteção do ambiente, tal como escrevi em “Uma experiência de social-democracia moderna”.
Da mesma forma, a social-democracia moderna inova para dar resposta aos problemas dos novos tempos, como as alterações climáticas, a violência doméstica e os abusos sexuais, os movimentos migratórios, as alterações demográficas, as narrativas populistas, a criminalidade violenta ou as ameaças de terrorismo.
É esta social-democracia europeia moderna, adaptada à realidade portuguesa, que reúne o melhor dos valores do liberalismo e da justiça social e rejeita o socialismo de Estado e qualquer outro socialismo de pendor coletivista como afirmou Francisco Sá Carneiro, que constitui a base de sustentação ideológica do PSD. É nela que, inequivocamente, se inserem as medidas programáticas apresentadas pelo atual líder do partido no congresso de Braga, movido por uma forte preocupação de responder às justas aspirações dos portugueses, num quadro partidário extremamente difícil.
Não faz qualquer sentido catalogar essas medidas recorrendo à dicotomia esquerda-direita, uma velha divisão totalmente ultrapassada e de que se servem alguns políticos e analistas como arma de radicalização do discurso e do combate político. Não só é conceptualmente desprovido de qualquer rigor analítico como é fonte de confusão. Em quase todos os governos da União Europeia são tomadas medidas que são qualificadas de direita e outras de esquerda. Num mundo em mudança acelerada sujeito a choques globais, uma mesma medida pode ser qualificada como sendo de direita por uns e como sendo de esquerda por outros.
Há 50 anos, Sá Carneiro estabeleceu a defesa da dignidade e a afirmação da pessoa humana como o elemento central da definição do PSD. Na sua posse como Primeiro-Ministro reafirmou-o: “A pessoa é a medida e o fim de toda a atividade humana. E a política tem de estar ao serviço da sua inteira realização. Essa é a nova regra, o novo início, a nova meta”.
Este humanismo personalista rompe a artificial simplicidade maniqueísta com que se procura pintar o espetro político, precisamente porque as respostas que sugere não dependem de qualificações estéreis. Ao fim de cinco décadas, a social-democracia não só não perdeu atualidade, como continua a inspirar as decisões dos dirigentes do PSD.