A ERRADICAÇÃO DAS BARRACAS E A CRISE DA HABITAÇÃO
Num tempo em que muito se fala da escassez de habitação condigna para quem não dispõe de avultados recursos financeiros, a Câmara Municipal de Lisboa decidiu lembrar o Programa Especial de Realojamento (PER) que tanto sucesso teve na erradicação das barracas nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto.
Faz hoje precisamente 30 anos que o Conselho de Ministros aprovou o diploma que instituiu o PER, o maior programa no domínio da habitação alguma vez levado à prática em Portugal.
Tratou-se de erradicar na Área Metropolitana de Lisboa 28.600 barracas e 13.400 na Área Metropolitana do Porto e de realojar 48.000 agregados familiares.
O sucesso deveu-se à escolha das opções certas para que o PER passasse efetivamente à prática e a obra nascesse, para que não ficasse no papel, no powerpoint como hoje se diz, e nas declarações dos governantes para a comunicação social.
Em primeiro lugar, foi a opção de colocar as autarquias locais no centro do processo de execução do programa, não só na inventariação e demolição das barracas, mas também na disponibilização das habitações para o realojamento das famílias que as ocupavam.
Nesse sentido, foram criados incentivos muito fortes para que as autarquias estabelecessem com o Governo um compromisso sério e firme para que a obra avançasse.
O Governo de então colocou à disposição das Câmara Municipais avultados recursos financeiros para a aquisição e infraestruturação de terrenos, para a construção das habitações e para a aquisição de fogos já construídos, a que se juntou a transferência para os municípios de milhares de fogos na posse do Estado.
O Programa Especial de Realojamento foi, em geral, muito bem acolhido pelas Câmaras Municipais e afirmou-se como um exemplo de boa colaboração entre o poder central e o poder local para a resolução de um grave problema social.
Para além do PER, foi lançado um programa de construção de habitações económicas através da disponibilização de terrenos detidos pelo Estado e foi criado o regime de apoio ao arrendamento.
Quero, nesta ocasião, destacar o apoio dado ao programa desde o seu início pelo então Presidente da Câmara de Lisboa, Dr. Jorge Sampaio, e o seu contributo para que outras Câmaras Municipais do Partido Socialista e do Partido Comunista ultrapassassem as questões ideológicas e colaborassem com o Governo para a resolução do problema dos bairros de habitações degradadas.
No Vol. II da biografia de Jorge Sampaio, da autoria de José Pedro Castanheira, escreve-se: “O PER é vital para curar a maior úlcera de Lisboa. E vem confirmar a tese de Sampaio de que a Câmara Municipal de Lisboa só tem a ganhar em colaborar com o poder central”.
O Programa Especial de Realojamento constitui, sem dúvida alguma, um dos legados dos meus governos de que mais me orgulho, pelo carácter profundamente transformador que teve na vida de tantos milhares de famílias, que passaram a ter um teto digno desse nome – um aspeto que é crucial para a igualdade de oportunidades e para a mobilidade social.
Foi também por isso que aceitei associar-me a esta comemoração, num momento em que a Habitação é um tema tão presente no debate nacional.
De facto, o atual Governo anunciou há cerca de um mês, com grande estrondo, um novo pacote de medidas designado “Mais habitação” para resolver a crise social em que o país se encontra mergulhado devido à escassez de casas para habitação e para arrendamento e do consequente aumento dos respetivos preços.
Como tem sido sublinhado, a atual crise é o resultado do falhanço da política do Governo no domínio da habitação nos últimos sete anos, com custos sociais elevados para muitos milhares de famílias.
Não faltaram planos apresentados à comunicação social com pompa e circunstância e que, acima de tudo, ficaram no papel (ou no powerpoint), sem que agora apareça pelo menos um Secretário de Estado a assumir a responsabilidade pelos erros cometidos.
O novo programa inclui algumas medidas positivas óbvias – como é o fim dos “vistos Gold”. Mas tem outras medidas negativas que reforçam dois problemas que atingem muitas das políticas anunciadas pelo atual Governo e que põem em causa a sua eficácia.
Por um lado, o novo programa tem um problema de credibilidade.
Lembro que a credibilidade em política é definida como “o grau em que as pessoas e os mercados acreditam que as políticas anunciadas pelas autoridades são de facto cumpridas”.
Porque é que a credibilidade em política é importante?
Porque influencia as expectativas dos indivíduos, das empresas, dos investidores, das organizações da sociedade civil e dos mercados e, por essa via, influencia as suas decisões, em particular as decisões de investimento e de financiamento.
Como o historial do Governo nos últimos sete anos não é positivo em matéria de cumprimento das promessas feitas, o novo programa de habitação sofre do problema de credibilidade próprio das políticas do atual executivo.
Os estudos mostram que uma vez perdida, a credibilidade leva muito tempo a recuperar.
Para que as pessoas, as empresas, os investidores e os mercados voltem a acreditar nas promessas anunciadas pelas autoridades é preciso que elas se comportem de forma consistente durante um longo período de tempo.
Assim, para que as iniciativas do Governo no domínio da habitação tenham algum efeito em tempo útil, eu aconselharia o seguinte, no quadro da discussão pública:
– Em primeiro lugar, aconselho que o Governo se encoste à credibilidade das Câmaras Municipais colocando-as no centro da resolução da crise da habitação nos respetivos concelhos.
– Em segundo lugar, aconselho o Governo a que afaste a absurda ideia de fazer do Estado um agente imobiliário ativo, substituindo os empresários e os proprietários das casas, e que perceba que os senhorios não são um instrumento de política social.
Os livros ensinam que os instrumentos fundamentais da política de redistribuição do rendimento são os impostos e as transferências públicas e não as rendas dos senhorios.
– Em terceiro lugar, aconselho o Governo a que deixe de lado preconceitos ideológicos e perceba que não é possível aumentar significativamente a oferta de casas sem a participação ativa dos investidores privados.
O aumento da oferta pública é importante, mas não basta.
Mesmo que o Governo acolha estas três sugestões, tenho muitas dúvidas de que o novo programa tenha sucesso.
Para além da falta de credibilidade, há um outro fator inerente ao atual Governo que põe em causa a eficácia prática do programa “Mais habitação”.
Trata-se do fator confiança.
Ao longo dos seus sete anos de poder o Governo tem feito o possível para corroer a confiança dos investidores. Não é só porque não cumpre as promessas feitas.
O histórico do Governo mostra que, para alimentar o monstro da despesa pública corrente que criou, tem ido ao ponto de alterar a seu favor compromissos legais na base dos quais as pessoas, as empresas e os investidores tomaram determinadas decisões no passado.
Foi, por exemplo, o caso da alteração das regras de atualização de preços por serviços prestados, da atualização das pensões de reforma e das rendas dos prédios urbanos. Foi ainda o caso da alteração das regras fiscais em que as empresas montaram os seus negócios e fizeram os seus investimentos, através da imposição de impostos extraordinários, de derramas estaduais, de adicionais aos impostos e de outras penalizações.
Um poder político que procede assim, que muda as regras do jogo que anteriormente definiu de acordo com as suas conveniências, perde, como é óbvio, a confiança dos investidores.
De acordo com os estudos, a certeza jurídica e a estabilidade fiscal são condições determinantes das decisões de investimento.
Agora, com o novo pacote de medidas da habitação, o Governo deu dois outros golpes no clima de confiança dos investidores.
Por um lado, pôs em causa o direito de propriedade dos prédios de que os cidadãos são detentores através da ameaça do arrendamento compulsivo de casas devolutas.
A habitação condigna é, sem dúvida um direito dos cidadãos, mas o desrespeito pelo direito de propriedade pode impedir que, na prática, sejam construídas casas suficientes para garantir aos portugueses o acesso à habitação condigna a que têm direito.
Face a este conflito de direitos, os marxistas ignorantes das regras da economia de mercado que vigoram na União Europeia a que pertencemos dirão que se proceda à coletivização da propriedade urbana privada. Deixemo-los em paz com a sua ignorância.
Para piorar, o Governo propõe-se ainda ressuscitar o “congelamento das rendas” de tão má memória para as rendas anteriores a 1990, passando o Estado a pagar aos senhorios a atualização das rendas.
Face ao historial do atual Governo, quem garante que o Estado cumprirá no futuro essa obrigação e não mudará as regras como já o fez noutras situações?
E quem garante que os incentivos fiscais e de outra natureza que o Governo agora promete aos proprietários e investidores no pacote “Mais habitação” não serão alterados ou retirados no futuro?
Mesmo que o Governo acabe por recuar na ameaça ao direito de propriedade e no regresso do congelamento das rendas, o mal está feito. O novo golpe no clima de confiança dos investidores está dado.
Os investidores esclarecidos sabem qual é o pensamento do Governo e do que ele é capaz de fazer e não deixam de incorporar na análise do presente as lições do passado.
É, portanto, certo que, em resultado direto da ação do governo, o contributo do sector privado ficará aquém do que seria necessário para aumentar significativamente a oferta de habitações.
Não deixa de ser surpreendente que a entidade que preparou o programa “Mais habitação” que foi apresentado com pompa e circunstância não tenha tido o discernimento para perceber que a máquina burocrática do Estado não tem capacidade para executá-lo.
É por tudo isto que é muito provável que o novo programa apresentado com tanto estrondo tenha pouco sucesso e que, no fim da atual legislatura, em 2026, a comunicação social continue a evidenciar uma situação social no domínio da habitação que não é muito diferente da atual.
Acredito, no entanto, que através da ação das Câmaras Municipais, visando o aumento da oferta pública de casas, seja possível nos próximos anos disponibilizar às famílias de baixos rendimentos, que vivem em alojamentos degradados, sobrelotados ou precários, condições dignas de habitabilidade e, dessa forma, contribuir para melhorar o futuro de muitas vidas.
Esta deve ser uma primeira prioridade.
Estou certo de que os Presidentes das Câmaras Municipais, entre os quais os que estão hoje aqui presentes, colocarão os seus esforços e a credibilidade de que gozam junto das populações e dos investidores ao serviço das condições de habitabilidade das famílias mais frágeis dos respetivos concelhos. Recordando o trabalho extraordinário que fizeram na execução do programa de erradicação das barracas, deposito nos Presidentes das Câmaras Municipais a minha confiança.
Ao Senhor Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, que se empenhou na realização desta conferência, digo que analisei a Carta Municipal de Habitação e que dela colhi a ideia de que a sua implementação será muito positiva para a cidade, tal como já se está a verificar com os seus programas de apoio aos mais frágeis nos domínios dos transportes públicos e da saúde, suprindo assim as falhas do Governo.
Minhas senhoras e meus senhores,
Ao longo dos 49 anos da nossa democracia, Portugal superou muitos desafios.
O fim das barracas, em sequência do Programa Especial de Realojamento, que hoje recordamos, foi apenas um desses desafios e o seu sucesso ficou a dever-se à capacidade de governo e das autarquias, independentemente de divergências partidárias, trabalharem em conjunto para alcançar um bem maior, a melhoria das condições de vida de uma fatia da população.
Os desafios do presente são necessariamente diferentes dos de há 30 anos. Mas a capacidade do nosso país para os ultrapassar, designadamente na Habitação, resultará sempre da vontade de o Governo se aliar às autarquias no objetivo verdadeiramente nacional de conferir a todos os cidadãos uma habitação digna, no respeito pelos direitos de todos os portugueses.
Muito obrigado.