Texto do Prof. Cavaco Silva no livro comemorativo dos 30 anos do Conselho Económico e Social

01.02.2023

Texto do Prof. Cavaco Silva no livro comemorativo dos 30 anos do Conselho Económico e Social

Do Conselho Nacional do Plano ao Conselho Económico e Social

Aníbal Cavaco Silva

No início de 1981, após a morte do Primeiro-Ministro Sá Carneiro e a tomada de posse do novo Governo que não aceitei integrar, fui convidado para presidir ao Conselho Nacional do Plano, sendo vice-presidentes os Drs. Fernando Gomes, Carlos Carvalhas e Pedro Vasconcelos. Este órgão, antecessor do Conselho Económico e Social, tinha uma relevância na letra da Constituição da República Portuguesa de 1976 que era bem superior àquela que detinha na prática constitucional da nossa jovem democracia.

De facto, a Constituição de 1976 atribuía ao Conselho Nacional do Plano a tarefa de coordenar a elaboração do Plano, apresentado no artigo 91.º como um instrumento “para a construção de uma economia socialista, através de transformação das relações de produção e de acumulação capitalistas”, que devia “garantir o desenvolvimento harmonioso dos sectores e regiões, a eficiente utilização das forças produtivas, a justa repartição individual e regional do produto nacional, a coordenação da política económica com a política social, educacional e cultural, a preservação do equilíbrio ecológico, a defesa do ambiente e a qualidade de vida do povo português”.

A esta tarefa ambiciosa correspondia uma arquitetura confusa para a elaboração do Plano, dividindo tarefas entre a Assembleia da República, o Conselho Nacional do Plano e o Governo, acrescentando que “nela devem participar as populações, através das autarquias e comunidades locais, as organizações das classes trabalhadoras e entidades representativas de atividades económicas” (artigo 94.º).

Um órgão do tipo do Conselho Nacional do Plano e do que viria a ser mais tarde o Conselho Económico e Social é uma consequência da ideia de democratização da sociedade, expressão da participação política ordenada e coordenada através dos representantes legítimos dos interesses económicos e sociais.

Esta conceção do Conselho dificilmente poderia resistir às exigências da realidade política e económica. Não surpreende que, um ano após a aprovação da Constituição, através da Lei n.º 31/77, se tenha precisado que incumbia ao Governo a elaboração e execução do Plano, de acordo com as Grandes Opções aprovadas pela Assembleia da República, cabendo ao Conselho Nacional do Plano pronunciar-se sobre as Grandes Opções antes da sua aprovação pelo Governo e pelo Parlamento e sobre o Plano antes da sua aprovação pelo Conselho de Ministros.

Esta conceção participativa na elaboração do Plano – e não coordenadora – mais consentânea com o regime democrático, foi adotada pela revisão da Constituição de 1982. O Plano deixou de ser o instrumento para a construção de uma economia socialista e o Conselho Nacional do Plano, muito embora mantivesse a dignidade constitucional, era apresentado como um veículo para a participação dos agentes detentores de interesses económicos relevantes – os mesmos que na versão original da Constituição.

Numa intervenção que, na qualidade de Presidente do Conselho Nacional do Plano, proferi em março de 1983, por ocasião da visita do Presidente do Conselho Económico e Social de França a Lisboa, afirmei: «Temos de reconhecer que o Conselho Nacional do Plano tem exercido reduzida influência na definição da política económica e social portuguesa (…). Por condicionalismos vários tem o Plano vindo a desempenhar um papel substancialmente menor do que aquele que está implícito no quadro constitucional.» Salientei ainda que nunca o Conselho deixou de responder em tempo útil às solicitações que lhe foram feitas no âmbito das suas atribuições, apesar da «exiguidade dos prazos fixados para a produção dos pareceres, da escassez de informação económica disponível e a falta de meios técnicos».

Como também então referi, um órgão do tipo do Conselho Nacional do Plano e do que viria a ser mais tarde o Conselho Económico e Social é uma consequência da ideia de democratização da sociedade, expressão da participação política ordenada e coordenada através dos representantes legítimos dos interesses económicos e sociais, que assim influenciam as decisões públicas de forma proporcional à sua representatividade. A institucionalização da participação das organizações económicas e sociais na formulação da política económica e social permitia uma melhor conciliação entre os seus interesses específicos e o interesse geral, ao mesmo tempo que contribuía para reduzir as tensões sociais.

Em intervenções públicas, no primeiro semestre de 1983, defendi o reforço da concertação social, apontando-a como método privilegiado no domínio da política de rendimentos, ao mesmo tempo que expressei a necessidade de repensar o Conselho Nacional do Plano à luz da experiência dos seus 4 anos de vida e da evolução ocorrida no nosso sistema político e institucional e dos desequilíbrios estruturais que afetavam a economia portuguesa.

Em Junho de 1983, após a tomada de posse do Governo de coligação PS-PSD liderado pelo Dr. Mário Soares, solicitei formalmente a minha substituição como Presidente do Conselho Nacional do Plano. Quase um ano depois, ainda não tinha sido substituído. A propósito da tomada de posse dos membros do Conselho Permanente de Concertação Social, em março de 1984, recusei o convite para estar presente e protestei por escrito ao Primeiro-Ministro Mário Soares pelo facto de o Conselho Nacional do Plano, órgão constitucional de funções participo-consultivas no domínio da política económica e social, ter sido ignorado no processo de criação desse Conselho, do qual era naturalmente precursor.

A vitória do PSD nas eleições legislativas de 1985 e a minha nomeação como Primeiro-Ministro permitiram pôr em prática as medidas que vinha defendendo, também na área da concertação social. Esta era, aliás, uma área chave na conceção de social-democracia moderna em que eu acreditava e que queria pôr em prática em Portugal. A minha experiência, algo frustrante, enquanto Presidente do Conselho Nacional do Plano e o conhecimento aprofundado que adquiri, como professor universitário, da política de rendimentos e do pacto social de diversos países europeus, foram determinantes para que apostasse fortemente na concertação social.

Como escrevi recentemente em Uma experiência de social-democracia moderna (Porto Editora, 2020), “a concertação resulta da consciência do papel do Estado e das instituições sociais como complementares do mercado – que se deve privilegiar mas não sacralizar – ao incorporar o interesse coletivo e ao corrigir os enviesamentos que a liberdade de mercado pode introduzir na estrutura social”. A concertação social pressupõe, além disso, que cada parte que está em diálogo – representantes dos trabalhadores e das empresas – tem em conta não apenas o que é melhor para os seus objetivos, mas também o que é melhor para o país como um todo.

A vitória do PSD nas eleições legislativas de 1985 e a minha nomeação como Primeiro-Ministro permitiram pôr em prática as medidas que vinha defendendo, também na área da concertação social.

A concertação social passou da teoria à prática. Ao longo dos meus 10 anos de Primeiro-Ministro foram assinados 4 acordos de concertação social, que muito contribuíram para a redução da inflação e do desemprego, o aumento real dos salários e das pensões, a competitividade das empresas e o crescimento da economia e, em consequência, com impacto significativo na vida dos Portugueses. Participei em dezenas de reuniões da Comissão Permanente de Concertação Social, convicto de que o envolvimento do Primeiro-Ministro na discussão da política económica e social do Governo era fundamental para ajudar a encontrar compromissos e de que esses eram possíveis, quando devidamente explicado o que estava em causa. Acreditava, no fundo, que o bom senso prevaleceria, se todos estivessem de boa-fé no processo negocial.

Na revisão constitucional de 1989, que negociei com o líder do PS, Vítor Constâncio, e que consagrou alterações de grande alcance para a modernização do País, foi incluída a substituição do Conselho Nacional do Plano pelo Conselho Económico e Social. Este foi descrito no texto constitucional como “órgão de consulta e concertação no domínio das políticas económica e social, [que] participa na elaboração dos planos de desenvolvimento económico e social”. A minha ideia era fazer do Conselho Económico e Social um verdadeiro órgão de promoção do diálogo e concertação entre os parceiros sociais, como veio a ser acolhido pela Lei n.º 108/91.

No discurso que, como Primeiro-Ministro, proferi na sessão de abertura do Conselho Económico e Social, em Setembro de 1992, a convite do seu presidente, Henrique do Nascimento Rodrigues, fiz uma defesa firme das vantagens do diálogo social «na convicção de que o interesse nacional não pode deixar de constituir-se numa realidade em que, de algum modo, se revêm os vários e diversificados interesses de que é composta a sociedade portuguesa». Acrescentei, no entanto, «que a concertação social, na sua vertente institucional, tem um sentido nacional que, naturalmente, não se compadece com o alinhamento por estratégias estranhas às dos próprios parceiros sociais, na maioria das vezes alheias aos interesses neles representados e seguramente contrárias ao interesse do País».

Em contraste com a relevância diminuta do órgão que lhe antecedeu, o Conselho Económico e Social tem sido, em diversos momentos desde a sua criação, determinante para a melhoria das condições económicas e sociais do nosso País. Quer os representantes dos trabalhadores, quer os representantes das empresas souberam em diferentes momentos olhar para o bem maior e ceder, encontrando compromissos. Estes foram muitas vezes difíceis de alcançar, mas representaram avanços na nossa economia e sobretudo na nossa maturidade democrática.

É importante recordar que por vezes os consensos ou os compromissos falharam não por falta de vontade dos parceiros sociais mas por interferências dos partidos e de agentes políticos, preocupados mais com a conjuntura e a sua sobrevivência do que com o desenvolvimento do País.

Algo continua a ser verdade: tal como aconteceu com o Conselho Nacional do Plano, também o Conselho Económico e Social pode ser diminuído pelos Governos na sua relevância. É o que acontece – e aconteceu ao longo dos últimos anos – quando os governantes, numa clara desvalorização do papel dos parceiros sociais, decidem transferir matérias que deveriam ser objeto de concertação social para o poder de decisão do Governo e do Parlamento, por conveniência de aritméticas parlamentares conjunturais, em que nem sempre o superior interesse nacional é o que mais conta.

Os 30 anos do Conselho Económico e Social que agora se comemoram terão tido luzes e sombras. Contudo, na sua génese está um conceito que se mantém atual e que deve continuar a guiar a sua atividade: a todos incumbe o dever de um “diálogo social de boa-fé, sério e construtivo” para encontrar compromissos que conduzam ao progresso do País e à consequente melhoria das condições económicas e sociais dos Portugueses.

(Janeiro 2022)